segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Um dia de dezembro de 2013

Tem algum mistério na tua língua, na maneira como ela toca os dentes ao falar. Tem algo de belo nas tuas mãos, nos teus dedos a dançar cortando o ar. Algo de inacessível no teu pensamento, inexplicável teu tempo de falar, essa medida tempo e duração que te faz ser menos gente e mais luz. Lunar. E os teus olhos que acompanham o fluxo do pensamento sem perder o brilho daquilo que sente. Queria o sabor da tua palavra. Tem algo de novo nas tuas rugas. Novo pra mim. Novo na maneira como fico a olhar tua língua tocando os dentes. Palavra cuspida e dedos que cortam meu ar.

Carol Carolina (quando eu ainda era)

sexta-feira, 13 de maio de 2016

patéticos

somos patéticos. pa té ti cos e arrogantes. crentes da destruição da moral, mas não se esqueçam; patéticos. de qual? insuperáveis resignados do 'eu vi', 'eu sei' , pelo sim, pelo não, pelo muro, pelo que me satisfaz. e me traz. e me beneficia. e me. e só. isso que nos come dia a dia. nos mata pouco a pouco. não é o tempo. é a perda. melancolia insalubre energia doente gasta e comprada. quero ver quem paga. mixaria. migalha. antes fosse melancolia de lars. um planeta inteiro sem dialética nem histeria estruturada e reproduzida. um único objetivo, o fim. tô dentro. e fora. pois somos patéticos e só isso nos faz ímpar, porque ser par é exibicionismo carente. eu, que como ele, tantas vezes vil. e que também sofro angústia das pequenas coisas ridículas. preferiria a dormência. anestesiai-me. perco amigos e a piada também. minha pátria desimportante a todo instante eu te traí... não por isso. patéticos somos. patéticos. mas voltemos ao amanhã, ao ontem, porque hoje é muito pra quem tem olhos pra ver. essa gaiola gigante. com a porta aberta. ela tinha razão. humanizamos demais a vida. 

Carol Rodrigues [ou seria Carolina?]

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Não é Ângela

Um café com leite. Dessa vez o dia começa assim. O café e o leite pensando que ‘viver é uma espécie de loucura que a morte faz’. Eu peguei birra dessa palavra; pensar, mas ali ela está e lá vai sucumbir-se em seu próprio significado. O café com leite acaba e o pensar insiste. Calculista e compartimentado. Se eu fosse um quadro do Modigliani não ia pensar, seria pensada, não pelo pintor, mas por quem acha que se pode pensar sobre uma pintura. Desculpe a grosseria, vou me apresentar... Não é Ângela, meu nome. Um nome arruinado assim não necessariamente remete desprazer, ao contrário, aprendi a ser bem assertiva com ele. ‘Qual seu nome? Não é Ângela. Certo, e qual seu nome? Esse mesmo!’ E por inúmeras vezes pessoas tentaram me convencer que não ser alguém é ser ninguém, por incrível que pareça estava eu ali, a frente dos que tem nome e são, vivendo uma espécie de loucura que a morte fez comigo.

Poderia eu ter renascido da morte como Ângela, mas não. Não é Ângela é uma graça de Deus, palhaçada mesmo... Todo mundo está vulnerável ao tédio, até Ele. Devo ser considerada a piada celestial mais engraçada depois de Adão e Eva, claro, além de se encaixar paradoxalmente na minha identidade. Indefinida. Não sou loira, não tenho olhos azuis, nem verdes, não tenho a pele escura, não sou baixa, não como frango, não tenho religião, não gosto de berinjela, não confio em Deus. Eu sou o desafio Dele, mas não aceitei o duelo, o deixei sozinho nessa disputa poética com a natureza. Não sou boa de briga. Ainda mais quando a piada provoca seu próprio criador.

Eu não passo de uma promessa. Poderia ter aproveitado a existência para inventar verdades e surpreender o outro, no entanto finjo dizer mentiras que surpreendem a mim mesma, meu vazio cheio de mistérios. Deus está nele. O passado das estrelas também, apenas isso contemplo dos astros, o passado, anos-luz do que realmente são. E ainda me perguntam quem sou... Hei de ler poemas, ajudam-me a sentir mais a vida. Hei de não cometer o pecado de pensar. Hei de rezar. Nada mais solitário do que conversar com Ele. Por isso inventaram a prece, pra ficarmos sozinhos. Hei de ser comum. Nada mais egocêntrico que a originalidade. Hei de ser uma pintura de Modigliani. Hei de não ser Ângela, nem ninguém.

Carol Rodrigues [ou seria Carolina?]
Inspirado n'Um sopro de vida de Clarice.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Calor

(Por onde começo... Aliás, como se começa...) Desculpe, isso não é com você. Não. (?) É! Na minha cabeça não é, mas acho que é. Tá. Por onde começo. (?) Tinha uma barata. Será que a ideia da barata cola? Quer dizer, prende? Dizem que é preciso prender o leitor, afinal as pessoas não tem mais tempo (lê-se: saco) para textos complexos e extensos, pois vivemos num mundo globalizado, sociedade da informação e blá blá blá. Realmente. Isso não prende. Chato. Não posso simplesmente pedir (?): fica comigo! Já pedi isso pra alguém e ele não quis. (Passou). As pessoas não querem pessoas inconvenientes pedindo para que elas fiquem. Quem quer ir embora, vai. (Curei). Desculpe se fui inconveniente. (Fica comigo). Tá... Uma barata. Eu me pergunto como essa mulher conseguiu transcender matando uma barata. Eu mato aos montes aqui em casa e nada. Talvez um outro bicho... (Epifania). Entendi! Posso dizer então, Clarice (Espectro), que já transcendi meu céu e inferno num bicho. Morto. Ok. (Fica comigo). Como eu termino? Relacionamentos duradouros, como o nosso, (aquele que lê) são estranhos. Só sobrou você aqui comigo. Dizem que sobra (barra) resto é feio. Eu acho bonito. É aquilo que fica. Insiste... Isso não foi uma declaração barata (!) de amor. Não. Também não foi um jogo barato (?) de palavras. Só quero terminar. Esse podia ser o final... Ou esse! Ou esse. (Mais seco) Não! Espera. Estava no escuro do meu quarto quando achei que havia pingado Neosoro (pecado) no meu nariz. Era colírio. Desentupiu! Uma descoberta incrível se acha é em horinhas de descuido. O Guimarães diz que é a felicidade. Eu não. (Epifania). Os dois tem razão. Por motivos óbvios. Todo mundo tem suas razões. (Fica comigo). Moura Brasil. Aquele do frasco azul. Desculpe, esse tempo todo juntos e quem é você? Ela provou o pus branco que saiu da barata morta e transcendeu. Bíblia. Esse livro pra (eu me incomodo escrevendo 'pra') mim é Sagrado. Meu evangelho. Minha bíblia. Esse e mais um. (Monte). Enquanto escrevo, me ouço. (Ovo). Sim, Espectro! Ovo visto, ovo perdido. Acho que (me) perdi. Desculpe. Preciso terminar, pois um texto longo e chato assim não tem efeito. E o que quero é efeito. Tipo frase de efeito. 'Entender é a prova do erro'. Da Espectro. Do ovo da Espectro. Frase de efeito não se entende. Só sente o efeito. Por favor, não use essa frase no fim daquele programa de entrevista. Eu escolhi primeiro. Grata. Alguém sabe quais os efeitos colaterais quando pingo colírio no nariz? Falando em nariz me lembrei do Machado. Do faquir. (Assis). Chega. (Essa era boa) ... Como começo? (Fica comigo) Não! Termino. Com uma pergunta. Sim. A pergunta em si já se define. Em si é a solução. Explica a sua própria definição. Enuncia seu próprio desfecho. Ou seja, já é em si mesma a resposta. Meu mais novo passatempo. Perguntar. Por isso criança é ser sublime. Não buscam respostas. Se divertem fazendo perguntas. A gente grande esqueceu. Aonde quero chegar? Não. Você. Eu vou-me embora pra Macondo. Lá sou amiga de uma barata. Lá tenho meu colombiano preferido. Dentre tantos latinos. Um português também. (Dois). Um (em três) acredita tanto. O outro; (quase) nada, apesar de mago. Chega. Como termino? Fica comigo. Nesse dia quente. As baratas. Dia perfeito para saírem. Tem gosto de camarão. Nunca experimentei. (Ainda). Com o abraço e as veias do meu uruguaio preferido (Dois). Um dia abdico do planeta em favor das baratas. Capaz de fazerem bom proveito.

Carol Rodrigues [ou seria Carolina?].

segunda-feira, 22 de julho de 2013

O que fica depois do amor?

O que restou foi aquilo que simplesmente não quiseste. O que restou foi a parte de mim por ti negada e devolvida. Restou-me desse amor. Eu, outra vez inteira, incrivelmente completa. Lanço mão do mito de que apenas estamos completos quando encontramos um amor, lanço mão da convenção de que somente serei repleta contigo. Isso não responde minhas inquietações quanto ao amor. Amar é ser menos, menor.


Não existe amor sem renúncia. E assim a verdade do amor se entrega à sua própria dureza, sua abnegação. O que ficou desse amor é a crueldade de lidar comigo mesma e com o engasgo de saber que um dia deixei de ser, fui despedaçada, me fiz inacabada por uma vontade atroz de te amar. O que ficou desse amor? Eu. Um corpo marcado de cicatrizes das partes que de mim saíram e para mim voltaram. Partes rotas marcadas numa pele brutalmente retalhada, acabada numa tessitura cruel de desamores, mas nada recompensa a beleza de tê-las de volta.  

[Carol Carolina]

Carta escrita para o processo de criação de 'Histórias Curtas Sobre Amores Inacabados'

quarta-feira, 6 de março de 2013

Do ator


“DIANTE daqueles que ficaram deste lado, um HOMEM ergueu-se EXATAMENTE igual a cada um deles e no entanto (em virtude de alguma operação misteriosa e admirável) infinitamente DISTANTE, terrivelmente ESTRANHO, como  que habitado pela morte, afastado por uma BARREIRA que por ser invisível não parecia menos apavorante e inconcebível, cujo sentido verdadeiro e a HONRA só nos podem ser revelados em SONHO.” Tadeusz Kantor, O teatro da morte, Folhetim, Teatro do Pequeno Gesto, Rio de Janeiro, 1998

Eu ainda estou a me perguntar por quais motivos exatamente optei por citar esse específico trecho de ‘O Teatro da morte’, provavelmente seja pelo fato de me fazer sentir. Não sei exatamente o quê. Simplesmente sentir, afinal ter sentido não necessariamente imprime uma lógica, um fim. Um sentido se faz na passagem, no caminho, no momento em que passo meus olhos pelas letras formando frases e ali mesmo por um segundo que seja eu consigo ler o que há entre as palavras, eu consigo enxergar o silêncio do autor que me atravessa, ouvir sua respiração despertar a minha inspiração e assim me tocar com algo infinitamente estranho, porém estranhamente interessante.

Talvez tenham percebido meu sentido como uma completa falta de sentido, mas todo momento de ‘falta de sentido’ é exatamente a assustadora certeza de que ali há o sentido [1]. Por isso peço; Sintam. Deixem passar. O que vou contar aqui é um despretensioso relato da experiência sensorial, artística e humana do ator que cria, propõe e entende que seu papel vai além das estabelecidas “tarefas” de interpretar e representar, além da construção de personagem; o ator que leva e coloca os signos em movimento [2].

Uma vez questionada sobre a busca da verdade Marina Silva [3] disse que muitas vezes somos tomados, ensurdecidos pelo barulho das nossas certezas. Experimentar nesses dois últimos semestres o processo colaborativo de criação cênica entre cursos da SP Escola de teatro foi essencialmente instigante para silenciar o barulho das minhas certezas, e por consequência escutar o outro, o diferente, alimentando, deste modo, os meus questionamentos quanto ao papel do ator no processo de criação teatral.

[...]

Diria que em face desse laboratório de experimentação proposto pela atuação me transformei em sujeito da experiência, aquele que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião [4]colocando-me interessada na construção artística e expressiva, porém arenosa e arriscada, da cena teatral.

A disponibilidade no trabalho do ator resignifica seu próprio trabalho, só posso compreender o que me acontece se der abertura suficiente para que aquilo me toque, e esse espaço de expressão, de proposta do ator promove um espaço de liberdade onde não há certo ou errado, uma vez que potencializa o posicionamento do ator frente às questões da obra [5].

              [...]

Coube a mim revivenciar e repassar esses momentos em que presenciei, na minha observação, o trabalho do ator como uma realidade sensível, como se os limites do papel do ator se reestabelecessem a ponto de não terem mais fronteiras delimitadas e claras entre o ator que representa/interpreta e o ator que cria. Parece-me, nessa observação, que o espírito de comunhão da arte se faz presente quando penso na possibilidade de um ator vivo, manifestado não apenas em seu papel como instrumento mediador de representação e sim alguém que busca sua afirmação no processo criativo, propondo ações, improvisações, experiências; e acima de tudo reinventando-se como artista. Reinventando-se quanto Ser.

Posso dizer que reconheci e redescobri a mim mesma, nada que me libertasse da insegurança e da crise permanente do ator, pelo contrário o terreno ficava ainda mais arenoso, mais instável, mas só assim pude chacoalhar minhas convicções e enxergar que a única condição para lutar pelo direito de criar é a fé na própria vocação, a presteza em servir e a recusa às concessões. A criação artística exige do artista que ele "pereça por inteiro", no sentido pleno e trágico destas palavras [6].

Arrisco pensar numa lei natural do ator, como a grande Lei do coração de Artaud, uma Lei que não seja uma lei, uma prisão, mas um guia para o Espírito perdido no seu próprio labirinto [7]labirinto metafísico composto por nossas dúvidas, inseguranças, sonhos, mas pensar isso provavelmente me condicione a buscar uma compreensão inatingível do trabalho do ator que é vivo, por excelência, regido por uma força mutável, em constante movimento, que me tira da inércia humana e me faz ser menos gente, menos Eu.

Já no fim deste relato posso somente fazer referência e reverência às palavras que devidamente suprem as minhas; “talvez o que me tenha acontecido seja uma compreensão – e que, para eu ser verdadeira, tenho que continuar a não estar à altura dela, tenho que continuar a não entendê-la. Toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão. Todo momento de achar é um perder-se em si próprio. Qualquer entender meu nunca estará à altura dessa compreensão, pois viver é somente a altura que posso chegar.”[8]

[Carol Carolina]
Em construção.


[1]Clarice Lispector. A Paixão Segundo G.H. Editora Rocco Ltda. Rio de Janeiro, 2009. P.34
[2] Antonio Guedes. O ator contemporâneo: enfim, um artista? A[l]berto, Revista da SP Escola de teatro. #1, p.19. 2011
[3] Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima é ambientalista, historiadora, pedagoga e política brasileira.   [www.eumaior.com.br]
[4] Jorge Larrosa Bondía. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, #19, p. 25. 2002.
[5] Miriam Rinaldi. O que o ator-criador tem construído para si? A[l]berto Revista da SP Escola de Teatro. #1, p. 26. 2011.
[6] Andrei Tarkovski. Esculpir o tempo. Martins Fontes. P. 42. 1998
[7] Antonin Artaud. Carta aos reitores das universidades europeias.
[8] Clarice Lispector. A Paixão Segundo G.H. Editora Rocco Ltda. Rio de Janeiro, 2009. P.14

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Do amor

Eu tive um sonho, um sonho de outra vida em que nos amamos separados. Separados por uma imensa redoma transparente, através de um vidro translúcido nos olhávamos, sem toque, som, cheiro, nem calor; e nos amávamos. Eu lia seus impossíveis lábios dizerem platonices e minha alma se confundia com a sua distante. Áspero amor, dali eu nunca sairia e alimentaria minha raiz pela fotossíntese da luz dos seus olhos, mas tomado por um fogo precipitado você disse conhecer os passos que me levariam ao seu encontro. Caminho só se faz caminhando e então fui. Estranhamente eu fui e você não.

No sonho reencontrei você anos depois. Cansados nos olhamos como nunca e sempre. Naquela mesma fronteira transparente, no limite de nós dois, seu olhar esquecido fez o meu chorar. Nosso amor era apenas um grito ensurdecido pelo tempo. Uma vida inteira passei a buscar seus passos sem ao menos dar-me conta do peso invisível desse amor saturado em meu corpo, e ao nos aproximarmos eu, sorrindo largo da eterna e repetida ironia de nossa existência, lhe disse:

“Não nos falta tempo. Espero você numa próxima vida”.

Encantada com a possibilidade de um sentimento imortal, consolada pelo meu imperecível coração, um velho e sábio silêncio tempesteou a lei natural do amor. Mergulhada nos olhos lacrimejados de pausa não pude ler seus lábios timidamente se mexendo através do vidro como se pudessem me machucar se realmente os decifrasse.

[Carol Carolina]

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Um mentiroso sabido


Fui lá eu conversar com Deus pra saber o que tenho de fazer pra ser Rei.
Ele disse pr’eu ser bom.
Taí um troço que nunca entendi...
Bom de quê?
Tornei a falar “sou bom de plantar e apanhar”
O Cabra me desconversou numa prosa leseira de fazer o bem.
Bem pra quem?
  
Em monarquia de rei morto o tempo esfarela qualquer peia
Meus cambitos ainda aguentam um punhado de chão
Prefiro essa vida correndo desembestada
A me angustiar se o Bom vai tá Bem no caixão.


[Carol Carolina]

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Foi ou não?


Do mal que me causaste fiz tapete.
Limpo os meus pés de toda a tua culpa.
Carrega teu passado sozinho e
Suporta o peso daquilo que te cega,
Já que na tua escuridão ninguém te vê de verdade.
Inútil foi querer enxergar; e ter luz.

Insuportável o tempo em que me alimentava
De minhas próprias palavras.
Tudo o que escrevi foi para mim.
Você só não me quis porque bem te fiz.
Lembrança besta de uma conhecida qualquer.
Por mim.

[Carol Carolina]

sábado, 20 de outubro de 2012

Pêsames


Para coisas desditas
com palavras tão poucas
náuseas dos desesperançosos
de paixão desperdiçada
com frios e compactos olhares
durante conversas roteirizadas
por vivos ausentes de vida
em momentos que não se eternizam
ante aflição de estátuas e cadáveres
máscara pegada à cara
entre durões insustentáveis
até tolerantes desmemoriados
sobre relações movediças
perante seduções egoístas
de juras imprudentes
com entulhos entesourados
meio a repetidas autossatisfações de anseios
permanentes de dor
escolhas convenientes
sonhos covardes
aos que nunca renasceram
a quem não faz de si o que se é
aos que amam sem amar
a tudo que só tem nome...
Meus sentimentos.

[Carol Carolina]

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Memória não finda

Reencontrei um amor
Numa foto em preto e branco,
Desconhecido encontro,
Inefável destino concebido,
Igual fé e sol
Mapa da mina
Embevecida por dentro
Quem era você?

Meu precioso achado
Entre potes coloridos de gelatina
Com a faca e o queijo na mão
O acerto de contas
Confluência de sangue e fluidos,
Mãos e bioportas, silêncio molhado
Perdi a cabeça e o pudor
Presa à teia das minhas próprias fiandeiras

Sonhos épicos profetizando a terrível tragédia,
Num jogo fugaz e estranho
De extravio de espíritos
Perdi você
Cada passado carregando sua culpa
Terrível ponto reticente
Eram apenas dois pés dormindo encostados
E entre eles,
Meu abissal amor.

Precioso encaixe
Incontáveis explosões
Profundamente não me decifraste
Sobre nossos corpos separados
A vida se escorre, líquida
Não há poema, nem palavras úmidas
Viraste as costas
Se deu o vazio, veneno que cura
O desejo de ser pleno, sem promessa.

[Carol Carolina]

domingo, 26 de agosto de 2012

A história inventada da menina que não sentia [FIM]

Parte II clique aqui
Parte I clique aqui

Uma dor rasgava lentamente o peito desse homem que diante o amor impossível se viu envolvido numa desgraça ainda maior em sua vida; estava voluntariamente apaixonado pela menina que não sentia. Essa sina o desordenou de tal maneira que dentro dele surgiu um ímpeto estúpido e inútil de coragem que o fez fantasiar a possibilidade de curar o mal de Clara com o amor que sentia por ela. O terrível e mortal sonho dos esperançosos.

Ela se deixou ser amada, entendia muito bem que sua alma perdida vagava por outros caminhos menos aquele que a faria talvez amar Mikael. Travaram um relacionamento e naturalmente passaram a viver juntos. Casados. Mais servo do que anjo, ele guardava seu amor e o dedicava à sua mulher todo bem ou maldito dia e a presenteava com rosas encarnadas grandes e distintas, num desafio diário de resignação que, ao fim de quatro anos de convivência, de nada serviu. Seu amor o sentenciou e condenado à praga da incerteza Mikael carregou a cruz e seguiu sua Via Crucis, cego por um sentimento incurável.

Clara via seu marido aflito numa situação delicada e incômoda, assombrado por uma atmosfera que circundava a loucura, à beira de um colapso silencioso. Num dia particularmente estranho, em casa ele a olhava com os olhos fúnebres, firmemente segurou o rosto indolente de sua mulher, que ao mesmo tempo lhe parecia angelical, sentiu uma mão invisível apertar sua garganta sufocando os rugidos de animal ferido e clamou: “Eu te amo, Clara, por que não vês? Olha como estou. Não há sangue mais em mim, bebeste tudo, me sugaste cada gota de vida. Não há fúria nem brando que a faça sentir. És como uma chaga aberta em meu peito. Não se bastaste em arrancar meu coração? O que quer mais? Minha alma? Não posso mais ser vítima dessa loucura. Pode alguém enlouquecer por amar sozinho durante quatro dolorosos anos? Eu te tenho como se não te tivesse. Talvez seja esse querer de querer que esteja me matando. Nem as rosas que te dei conquistaram-te. Tudo é perecível ao teu lado. Vivo na vertigem dos teus sortilégios. Há tanto tempo te espero, espero... E apodreço”.

Imóvel ela acompanhava cada frase dita e não dita por seu companheiro, sem ao menos entender o significado profundo dessa palavra. Lembrou-se das vozes que escutava quando pequena – Desalmada! Desalmada! – Queria que ele parasse de se comportar como um alucinado e por isso insistiu no discurso pedante de sempre:

- Não passei um dia sequer, Mikael, sem lhe agradecer por tudo o que fez por nós e por sentir tanto amor assim por mim...

– Cale a boca! – gritava. – Prefiro uma faca rasgando meu punho a escutar essa ladainha de sempre. Chega! Toma-me, Clara, como teu amor. Crava teu nome em mim e te redescobres viva...

- Eu posso mentir, apesar de saber que não há transparências na minha vida, eu ainda posso mentir se quiseres – falou encarando firmemente Mikael. Estou presa a essa situação desde o dia em que apareci no mundo; opaca, viva, mas morta. Estou morta desde o dia em que surgi. Nem ao menos sei se nasci. Carrego o peso de não sentir e a culpa daqueles que por mim sentem, isso já é suficientemente pesado, não sei se triste, nem alegre, mas pesado. Não consigo lamentar, não tenho a sensibilidade para te amar, mas estou aqui.

- Não. Nunca esteve – sussurrou ele virando as costas, chorando de dor e amor pelos poros da sua pele. E subiu as escadas de casa.

Seria possível outro destino? Quantas orações a menina escondida entre lençóis escutou Madre Glória rogar pela cura de sua rebenta. Clara tomou conta das tantas vezes em que testou os limites do amor de seu esposo, se alimentava de cada lágrima e desespero, observava atentamente cada gesto e palavra dele e extraia seiva sistematizada para teorias e aplicações práticas do seu estudo com as emoções. Não era certo. Subiu as escadas correndo, abriu a porta do quarto e jogado ao chão estava seu companheiro pálido e ensanguentado, à maneira que preferiu estar a viver ao lado dela, com os pulsos cortados.

Um grito assustado. Clara se aproximou dele, viu que a situação era crítica e tentou correr para pedir ajuda, ele a gritou, pois quis pagar o preço de fazê-la sentir com a própria vida; que fosse amor, tristeza ou remorso, mas que sentisse. Ela entendeu e mentiu. Abraçou Mikael num suspiro amável, forçou os olhos para lacrimejarem, passou lentamente as mãos pelos seus cabelos, beijou-lhe a testa, olhou para além dos olhos e disse:

- Meu amor, por que fizeste isso? Eu te amo, quantas vezes for preciso digo, pois agora sinto uma dor a quebrar os ossos do meu peito como se fosse meu coração sair pela boca. Meu estômago se revira dançando dentro de mim. Minha pele se arrepia como se uma brisa gelada me acariciasse... Estou aqui. Aqui! E te amo.

No último fôlego de vida Mikael sorriu e murmurou:

- Não minta para mim. Você ainda não sabe fazer seus olhos brilharem, Clara.

Sem adeus ele se foi. Sem tempo para sua gratidão ela se levantou e ligou para o hospital buscando ajuda. Em vão. Mikael morreu como um mártir nos braços de seu amor.

Ela o enterrou e junto com ele sua própria petulante e insistente ideia de convivência social, isso não era possível. Aquilo que lhe faltava, seja lá o que isso for, causava tanto repulsa nas pessoas que preferiu se isolar. Passou a viver sozinha às escuras manhãs e luzentes noites, o único momento do dia em que saia de casa era quando todos estavam a dormir, caminhava um pouco e tentava encontrar algum estabelecimento aberto para compras básicas.

Aproximadamente dois meses após a morte de seu marido, a viúva não se sentia muito bem, digo fisicamente,  começou a ter manhãs enjoadas e desmaios inexplicáveis. Foi ao medico e lá informada que estava grávida. Saiu apressada e confusa do consultório, pois não queria olhar mais um segundo sequer a cara de medo do doutor diante o estado inalterado da mais nova mãe.

Desceu até a rua principal de Saúva, movimentada e barulhenta. Parou diante um cruzamento, precisava atravessar. “Minha vida foi roubada de mim”. Pensava. “Todo esse tempo pessoas a me dizerem como devo ser e como agir. Quais são meus interesses? Aquele olhar. Não! Aqueles olhares estranhos a me perseguirem. Duas vidas. A minha e a mentira nos olhos do outros. Permaneço viva por eles? Ou por mim? E agora um filho? O que devo eu mostrar aos outros? Demonstrações de afeto para as escolhas que não fiz. Mentir. Foi tudo uma mentira mesmo sendo verdade. Nem mesmo eles sabem o que é felicidade e ainda assim se espantam por eu não sentir. Ou seria uma filha? Existem épocas as quais você não pertence. Somente eu posso entender minha condição, minha escuridão, humanamente permaneci viva pelas pessoas agora preciso ir.”

Lembrou-se das rosas de Mikael e disse:

- Eu mesma vou comprar as flores.

Atravessou a rua às cegas, olhando fixamente para as rosas encarnadas grandes e distintas da vivenda do lado de lá. De repente um barulho alto de buzina, logo depois o som de uma freada brusca a fez atenta. Viu um carro velozmente se aproximar. E no eterno milésimo de segundo antes da colisão, no infinito e curto espaço entre ela, o carro e a morte, Clara sentiu pela primeira vez uma sensação de folga nos ombros antes pesados, um conforto indescritível dentro de seu peito, como se cada órgão finalmente tivesse achado seu devido lugar e tudo se encaixava dentro de si. Sentiu a consolação inédita e original de sua alma finalmente a segurar suas mãos antes gélidas, mas agora quentes e vivas. Era tudo tão bonito, tão grandioso naquele limitado e perpétuo intervalo de tempo e espaço antes do choque que sobrenaturalmente seus olhos choraram. Seu corpo transcendia e respirava um só sentimento, alívio. Abriu os braços em paz olhando para o céu e despediu-se do filho que não teve. Era o fim. Clara desapareceu.



[Carol Carolina]


domingo, 29 de julho de 2012

A história inventada da menina que não sentia [Parte II]


“Está quase curada!” declamavam as freiras como poesia para os ouvidos de Glória. Clara sorria mostrando grandes dentes brancos e espremendo levemente os olhos... Sua técnica em mapear as sensações refinou sua percepção e olhar sobre o ser humano, mas enfraqueceu suas convicções. O que é amar? Como se sente saudade? Descrever feições. Porque os olhos brilham e as mãos molham? Método e lógica. Como se mede isso? Como se sente? Tem remédio? Intimamente fracassada, tinha uma vontade única de ser capaz de sentir com a alma e sabia que aquele lugar ficou pequeno para as respostas que buscava.

Feito soldado intrépido arrumou sua mala e resolveu seguir além da ignorância dos muros do convento, além da insignificância daquele povoado, rumo à cidade dos desvairados ventos do distante, dos labirintos pagãos e sonhos em perspectiva. A cidade da beira de lá; Saúva. Glória chamava aquele lugar de “cidade onde ninguém vê” e era pra lá que Clara queria ir. Foi-se sem despedir-se, desprendida dos laços simbólicos da convivência durante dezenove diáfanos anos.

Saúva, uma cidade medíocre, cinza, cheia de ruas, muros e casas, onde tudo é milimetricamente ordenado, apesar de apertada, afinal não era grande nem pequena, nem ampla nem estreita, mas povoada de gente, muita gente de um lado para o outro. Clara subitamente se interessou. Já bem tarde da noite andando pelas ruas de Saúva a moça cansada e ensimesmada notou que precisava de um lugar para dormir, parou de frente uma casa, bateu à porta e foi atendida por um rapaz.

Mikael ficou impressionado com a falta de vergonha daquela mulher que sem demonstrar timidez tratou de pedir um dia de estadia, já que não tinha para onde ir, nem dormir, além disso, tinha fome. O homem ali parado, a segurar a maçaneta da porta, ficou admirando aquela criatura falar disparates sem ao menos ruborizar as maças do rosto, nem gaguejar, crua. Movido por uma mistura perigosa de curiosidade e encanto ele resolveu receber em casa a moça dos cabelos castanhos brilhantes e despenteados, olhar frouxo e boca  espremida ávida por uma resposta. “Entre.”

Entraram e só depois se apresentaram. Mikael recebeu Clara em sua casa com zelo e atenção, desde a tragédia ali não havia entrado outra mulher.

- Aqui está o quarto, tem toalha e sabonete dentro do banheiro para um banho quente. Tem roupas limpas?
- Sim.
- Estarei na cozinha preparando algo para comer.
- Para mim?
- Também.

Ele desceu as escadas. Ela fechou a porta.

Mikael é doce, pintor amável e viúvo. Aos vinte anos casou-se com Helena, perdidamente apaixonado, e aos vinte e cinco perdeu sua esposa. Helena ficou enlouquecida e fraca com os desvairados ventos do distante de Saúva, queria outra vida, outro coração que não a queimasse por dentro, longe de uma existência de aparências e relações artificiais, ela queria desaparecer e por isso se matou. O viúvo carregava o peso da culpa silenciosamente, resolveu viver sozinho e como castigo não se envolver com ninguém, queria apagar os momentos de sofrimento e amor que havia passado com aquela mulher instável, impetuosa e comovente, até se deparar com Clara.

Os dois sentados à mesa, frente a pratos intocados, se entreolharam e logo Mikael suscetível aos mistérios de Clara pediu para ela contasse sua história. Sem rodeios nem melindres descreveu seu passado, sua condição e porque estava ali em Saúva. – ... E isso não é quem sou, mas simplesmente o que sei de mim – disse Clara indiferente ao espanto de Mikael.

Um luxuoso silêncio se instalou nas paredes daquela cozinha envolvendo-os numa atmosfera cúmplice, quebrando os invólucros da dúvida e do medo e, por conseguinte, a compaixão daquele homem diante terna e pura insensibilidade humana. Clara viu faiscar os olhos dele, nada parecido havia lhe tomado atenção, quis perguntá-lo o que e como se sentia, mas sabia que seus questionamentos causam incômodos e mal-estar, preferiu não deixá-lo nessa situação.

Depois de uma noite em claro - com o perdão do trocadilho - Mikael só pensava nela, já estava tomado pela intempérie apática daquela mulher. Não dormia mal assim há três anos, desde o suicídio. Levantou-se cedo e foi preparar algo para comerem. Clara já tinha saído e o deixado apaixonado.

Ela, na sua impenetrável solidão, continuou sua jornada em busca da alma que lhe falta, com a graça sobrenatural que essa tragédia pesa seus ombros imperceptíveis à força de tamanha infelicidade. Essa peregrinação nunca teria fim, e ela sabia. Andar pelas ruas de Saúva analisando comportamento humano e reações emocionais a tornavam uma estrangeira, um ser incomum vindo de outra dimensão simplesmente de passagem nessa vida apagada, sem brilho. "De que adianta essa apurada observação se nada me toca?" Sua clarividência jogava com seu raciocínio e logo resolveu procurar Mikael.

- O que duas pessoas fazem quando estão apaixonadas? – disse Clara assim que ele abriu a porta.
- Não sei... – confuso. - Elas se amam, ficam juntas, eu acho.
- Não, digo fisicamente.
- Se beijam, fazem amor...
- Então dá para fazer o amor?

Não, não dá. Mikael ficou em silêncio e no impulso da batida de seu coração a beijou com todo amor que podia caber dentro dele, fechou o olhos e sentiu o gosto daquela mulher casta e proibida. Clara de olhos abertos tentava acompanhar os movimentos estranhos com a língua a fazerem cócegas no céu da sua boca. Ele a levou para o quarto, fez aquele corpo frio tremer, arder, sentir as pernas dormentes como se formigas excitadas andassem pela sua pele. Ela teve contrações musculares e espasmos nervosos de prazer, um fogo latente desconhecido percorria seu corpo e essas ondas de calor arrepiavam cada pelo de seu contorno até uma súbita e violenta explosão. Teve um orgasmo. – Isso é o amor? – disse Clara na iminência de ter presenciado um milagre. Mikael silenciou-se. Não, não é.

[Continua...]

Carol Carolina

segunda-feira, 16 de julho de 2012

A história inventada da menina que não sentia [Parte I]

Ela não nasceu, foi encontrada num povoado qualquer, numa rua desconhecida, debaixo de uma árvore insignificante e enrolada numa manta azul de rosas encarnadas grandes e distintas com cheiro fecundo de leite. Era só um bebê sem passado, dizem que mesmo antes de nascermos todos temos um passado; ela não. Uma recém-encontrada, não existia até ser descoberta por uma madre de um convento ordinário daquele povoado. Madre Glória, velha e quase surda, também tinha um coração quase bom.

Naquele dia Glória saiu para sua bendita caminhada matinal. Um pé depois o outro e o olhar para o chão, entre cada passada um devaneio, mais um passo lentamente calculado e, de repente, um bebê enrolado numa manta azul de rosas encarnadas grandes e distintas ali na rua desconhecida, sem chorar, nem gemer, um pacote colorido no cimento cinza. O coração quase bom da velha freira pressentiu naquele momento a sua santificação, o tão esperado sinal sagrado depois de anos à espera da sua autoconsagração. “Enfim!” disse; mal sabia que para a recém-encontrada era o começo de tudo.

O bebê passou a ter nome; Clara. Passou a ter casa; um convento. Passou a ter utilidade e valor; ser prova da boa vontade e testemunha autêntica da fé do coração quase bom de Glória. Cresceu assim, um achado, quase que inventada, tendo coisas e invadida por um amontoado de substantivos e figuras que a definia. E isso era nada perto do inexplicável mistério daquela menina já com ralos cabelos pretos espetados e lânguidos olhos de cabrita morta. Clara não sentia.

Aos três anos de idade ficou evidente, a menina não se entristecia e nem se alegrava, parecia que nada lhe passava pelo coração. Sorriu uma vez ao lhe fazerem cócegas nas costelas, chorou quando cortou um pedaço do dedo mexendo nas agulhas e tesouras de Glória, mas nada lhe perturbava afetivamente. Era criança estranha, mas mansa. “Desalmada!” sussurravam as beatas do santuário. Ainda que velado, Glória sabia dos rumores de que seu rebento não tinha alma, um sopro de desgraça naquele coração quase bom e agora quase santificado.

- Só pode ser doença... E daquelas do sistema nervoso – diziam as línguas gélidas daquele internato. Madre Glória resolveu levar Clara ao médico e de mãos dadas saíram numa manhã quente e seca sem importância. Glória pelo caminho observava aquele rosto pueril de então seis anos de idade, sem nenhuma graça, apática e insuportavelmente domesticável. A mulher respirava mal pela tortura daquele infortúnio, pensando que a falta de afeto e ternura daquela criança acabava por também destruir o quase iminente zelo maternal que sentia por ela.

Chegando ao consultório a freira, quase enlouquecida, tentava explicar tudo o que  se passava com Clara:

- Doutor, ela não fica alegre, nem triste, não demonstra carinho, nem raiva. Eu não sei, pode parecer loucura, mas ela não sente nada, sabe...
- Como assim? A menina não sente... – tentava entender o médico olhando para a criança que o encarava com os olhos fixos e rasos – Ela sente fome?
- Bem, quando tem fome ela diz que quer comer.
- E sente dor?
- Uma vez se cortou e chorou... Sim... Acho que foi a dor, mas essas de nervos, ligamentos – discorria apavorada – só que não é isso doutor, estou falando de sentimento, sabe? Como se mede isso? Tem exame? Ou melhor, tem remédio?

O médico se calou por alguns segundos, talvez tenha até tentado pensar numa resposta, mas preferiu continuar escutando.

- É uma criança normal tirando essas coisas da alma... – suspirou a velha – Clara acorda, come, vai para a missa comigo, faz e entendo o que peço, mas nunca me abraçou, nem sorriu, nunca ficou enciumada, muito menos teve medo. Eu não entendo. Pode ser sistema nervoso, ou o coração quem sabe... – descrente, procurava respostas.

Logo o médico interrompeu a ladainha da freira e virou-se para Clara dizendo: Qual seu nome? Clara – murmurou a menina. Você tem quantos anos? Seis. O que você gosta de fazer? – Clara não respondeu – Você gosta de brincar? – Muda. Finalmente o médico, nada comovido com o desespero de Glória, recomendou alguns exames neurológicos e disse que a criança era uma menina introspectiva.

Glória sabia que Clara tinha coração e que seu sistema nervoso não tinha problema nenhum, tudo era muito difícil de identificar. ‘Introspecção é coisa de gente sabida’ pensava sozinha. Tentando se enganar Glória rezava dia e noite para que a criança sorrisse, chorasse ou fosse afetada por qualquer sentimento, mas tudo o que ela não queria era acreditar que a menina não tinha alma.

O tempo correu e a criança tornou-se uma mocinha de quinze anos devidamente inteligente e educada. Glória sabia que suas orações não resolviam o mistério da menina e tratou de orientar e padronizar Clara nos moldes sociais daquele povoado. O maior medo das beatas do convento era que estivessem criando alguém sem virtudes nem caráter, se dedicaram então a catequizar a jovem. Anos de sermões e pregações sobre o que é ser bom, como tratar o próximo, ou melhor, amar o outro. Agradecer sempre por tudo, também os infortúnios. Não agredir a ninguém, não matar, inclusive a si mesmo. Nunca mentir e fazer o bem. Simples assim.

Sem afetação Clara apreendia tudo mesmo não compreendendo o que era ensinado pelas tias do convento. A garota era rápida e comedida, sabia muito bem de sua condição, afinal aos dez anos tinha sido castigada por não sorrir e nem ficar alegre ao reencontrar Glória depois de um retiro religioso de trinta dias que a madre tinha feito num povoado ali perto. – Por que não ficou feliz? ‘O que é ficar feliz?’ - se perguntava Clara. – Você não ama madre Glória? – diziam. ‘Como eu faço para amar?’ questionava sozinha a pobre moça insensível.

Silenciosamente, e já aos dezoito anos de idade, Clara tentava viver naquelas circunstâncias de maneira que não a achassem estranha, apesar de não entender o que se passava de tão anormal com ela mesma; se não passasse a ser prática como as definições que sempre se meteram em sua existência ditando como ser e como agir, certamente cairia num processo infundado e desarticulado de isolamento.  Precisava encontrar saídas para facilitar sua interação com outras pessoas, no caso, as velhas.

“O que nós vemos das cousas são as cousas (...). O essencial é saber ver”. Isso ela sabia fazer. Clara passou a andar com um caderno azul anotando tudo o que via e percebia nas pessoas concernentes às emoções, sentimentos... Racionalmente a bastarda ia rabiscando suas conclusões lógicas para cada situação; uma vez, por exemplo, que madre Constelação chorou ao se lembrar de seus queridos pais já mortos. A garota discorria “água caiu dos olhos dela quando se lembrou dos mortos. Estava triste e chorou. Sorriu ao contar as brincadeiras do pai. Estava feliz e sorriu. Derramou lágrimas dos olhos ao lembrar- se da mãezinha querida e seus abraços antes de dormir. Estava feliz e chorou? Estava triste e sorriu?”. E os escritos enchiam páginas de questões e percepções. Não foi fácil, teve que  identificar e prestar minuciosa atenção a cada abalo afetivo daquelas mulheres. Anotava tudo.

Imediatamente havia se tornado uma profissional em simular comportamentos e reações emotivas, teve que elaborar tecnicamente e racionalmente máscaras para cada sentimento, precisou prender a vida em conceitos e formas para entender as emoções já que não podia senti-las.

[Continua...]

Carol Carolina

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Revelemo-nos

"Luz, mais luz!"
- Goethe -

Romper as formas pré-estabelecidas do corpo social, cortar as amarras políticas dessa organização simulada, abrir à força a camada abafada de limitações e condições de vidas fracas e incompletas, não responder às exigências vis do controle e da hipocrisia.

Libertar-se.
Lançar luz.

Respirar e perceber que é preciso desvendar o inverso, o avesso, conhecer o desconhecido e intuir. Consagrar-se ao sabor de justificativas humanas, fortes e iluminadas, ser generoso consigo mesmo, elevar-se à origem, ao caráter próprio; e que o sofrimento e a dor (bem) vindos desse mergulho interior sejam forças edificantes para um ser único, novo e perplexo. Não existe esquema, existe verdade e ela não é uma ilusão. Revelemo-nos.

[Carol Carolina]

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Despedida


Ela fez um presente, ele, uma surpresa.
Ela esperando ele chegar, ele pensando que ela já vinha.
Ela querendo explicar, ele tentando falar.
Ele disse uma verdade, ela achou que era mentira.
Ele disse uma mentira, ela achou que era verdade.
Ele disse, ela incomoda.
Ela soluçava, ele tinha tentado.
Ela causou, ele cansou.
Ele sumiu, ela se escondeu. 

[Carol Carolina]

terça-feira, 13 de março de 2012

Música de condão

Inspiração minha, divina, acorda comigo todos os dias, devagar, em cadência com meu despertar, no tempo que levo para voltar dos meus sonhos, no compasso de 'Spiegel im spiegel' meu corpo amanhece, que seja pleno e reflita a luz de tua força.

Minha querida Força, sê comigo um vislumbre de esperança para o meu dia, cria em mim o efeito pujante de um Prelúdio de Bach, traz o ritmo certo para minha batalha, o cálculo infalível para dança com meus desafios, a vivacidade certa para minha retina sentir e minha alma enxergar o atalho para sabedoria.

Estimada, Sabedoria, ainda não és minha, mas sei que és tão linda e delicada quanto Clair de Lune; alta, sublime, sensível e poderosa, sem erudição, por isso aproximas de mim assim, na forma de uma benção celestial com seu manto de harmonia que esclarece e acalma. O mérito de tua presença é valoroso, exige coragem e comprometimento. Faz de mim poesia e luz.

Para que meus sonhos voltem a viver e meu espírito repouse em sossego, cara Consciência, fica em paz, canta para os meus ouvidos um Noturno em mi bemol maior, assim meu corpo sabe que tudo foi como tinha que ser, sem medo, nem desapontamento, à luz esclarecedora da percepção da minha existência, deixando ver minha fé como força motora daquilo que me move, aquilo que é palavra final do meu hoje, algo que sempre em mim esteve e comigo vai estar, ente infinito e soberano; dEUs.

[Carol Carolina]

segunda-feira, 5 de março de 2012

Quando eu descobri que te amo

Eu tinha duas escolhas: acreditar ou deixar passar. Se eu confio que minha percepção não perdeu seu bom humor sigo no caminho e, como consequência, penso sobre ele. A cada passo meu rastro me deixa ver a verdade, eu me viro, tomo conta daquilo que tomou conta de mim e me certifico; se confio no que vejo, continuo. Aconteceu e de tudo me certifiquei. Mais um passo e o que ficou para trás é meu; meu afeto, minhas sensações. A pista é clara: apenas siga se acredita! Eu resolvi acreditar e, naturalmente, descobri que te amo, porque acreditar é diferente de entender. Quando acredito, confio e por confiar credito fé, diante essa fé, eu submissa, me convenço.

O caminho do entendimento é lógico, contudo a bondade coerente da minha fé me fez amar. Descobri que te amo quando, simplesmente, me esqueci dos motivos que me fazem te querer por perto; quando, por natureza humana, esperei que tudo me atravessasse para descobrir quem você é para mim. E isso vem lá de dentro do peito, do miolo do meu humano coração que cativa essa fé sem virtudes, sem disposição nenhuma de ser vista, esclarecida ou entendida, ela existe por ter nascido e isso já basta.

Nos breves e bons momentos em que teus olhos se abrem para mim, com verdade, em mim se abre um rasgo de alegria que representa, num segundo, a imensa harmonia que tua atenção me causa. O resto de mim é febre, que vem de uma vontade de convencer você que somos um do outro, mas só posso me levar a reconhecer essa verdade sozinha, fica ao destino te render, cabe à gentileza desse amor te entregar. Serei tua, pois tua é o que me falta ser. Ser meu é o que cabe ao meu amor cumprir.

“E de te amar assim, muito e amiúde, é que um dia em teu corpo, de repente, hei de morrer de amar mais do que pude.”

Enfim, eu te amo.

[Carol Carolina]

domingo, 8 de janeiro de 2012

Meu dia é simples

Meu dia é simples. É um descuido sensível sem trapaças. Discreto desarranjo diário na tentativa de não me contagiar com a hostilidade. É tudo muito simples; acordar, esquecer, despertar, respirar, viver, revisar, escolher, dormir, recordar e acordar. Entre uma atividade e outra um gole d’água e um sorriso. Meu dia é simples. Ela tinha amor e toda razão, sem saber, pois não existe vaidade que supere a misericórdia de um coração discreto, claro e humilde. E eu, na minha intenção torta, fraca e desalinhada, pretendo decifrar os arranjos e acordes que guiaram a vida dela e, quem sabe, tocar as notas da cadência brilhante daquela existência tão próxima da minha, tão longe de mim. Meu dia é simples e minha única aventura será reencontrá-la novamente e de lá nunca mais me despedir.

[Carol Carolina]

sábado, 1 de outubro de 2011

Feito gente grande

Quando eu crescer eu quero ser. Ponto. Ser já é estado, condição categórica do sentido autêntico da palavra. Ser. Aquilo que faz com que eu exista, a minha causa e o meu efeito, motivos de lamentação e louvor. Ser é legitimar o que se é. É reconhecer a autenticidade do real e expressar de fato tudo que existe e foi concebido dentro de si. Ser é equivalência. Relação entre valores e suas manifestações , 'se e somente se' existir verdade, 'se e somente se' os efeitos biológicos expressarem o abstrato, o sensível. Voz 'se e somente se' intenção, fisionomia 'se e somente se' índole, gesto 'se e somente se' caráter, ser 'se e somente se' ser. Por dentro e por fora.

[Carol Carolina]


quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Proponho

Eu não sou boa com as palavras,
elas que são boas comigo,
sustento e amparo,
tormento e reparo...
Um brinde: Tim tim!
(por tim-tim).

[Carol Carolina]

domingo, 25 de setembro de 2011

Afastamento

Ela tinha alguns anos quando percebeu que o tempo não passa e sim dá voltas. A vida não é uma linha reta cronológica de acontecimentos e sim um círculo de repetições e carmas a serem resgatados e regenerados com a vontade única de experienciar o amor. Ter um pai Divino e uma mãe Luz, não só no nome e sim no caráter, é comprovar que a fecundidade está além da reprodutora, percorre a espiritual. Foi preciso conhecer o amargo da realidade para saborear o doce da existência, afinal ela quis assim; padecer para compadecer, e até hoje o é. Eis que perante a dor existe a beleza, aquela que transforma e traz lucidez. 

[Carol Carolina]

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Tudo acontece

Tirar o valor da efemeridade de tudo o que existe, real ou aparente, é se tornar impermeável aos afetos, à cumplicidade dos acontecimentos, à vida. Desacreditar do curso natural das coisas é, simplesmente, sustentar a solidão e não propor um pacto honrado de intimidade com ela.

Ser transitório é ser humano, compreender o efeito temporário da nossa existência é preencher o próprio vazio com ternura e bravura. O que mais me atrai nessa passagem é o convívio, notável arte da disponibilidade, estar disponível a tudo o que nos cerca; à decrepitude do concreto, à magia das árvores, ao afago do vento, ao poder do tempo, àquele do outro lado da rua, à distância, ao desconhecido, ao encontro.

Tudo acontece aqui dentro, e isso não passa de uma via incontrolável de desabafo. Nos claustros da minha travessia eu busco um despertar consciente e um lugar para dançar, afinal ninguém pode ser tão denso e carregado assim, apesar de me escavar intimamente, e profundamente, a minha investigação também celebra a pausa, entoa o efêmero, reluz a superfície, cuida do simples. Profundidade, muitas vezes, é disfarce para caretice. 

[Carol Carolina] 

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Traçado escrito


Eu me vandalizei por você. Pichei minha própria pele com seu cheiro para todo mundo te sentir em mim. Destruí as vidraças da minha aflição e libertei o futuro que eu mesma inventei para gente. Tatuei seu rosto no meu coração, assim ele te reconhece quando você decidir entrar. Grafitei seu nome nos meus olhos, quando me olhar sinta-se seguro; ao me ver, se encontre.

Decapitei o medo, sufoquei meu próprio peito, dei minha cara a tapa.
Gritei meu absurdo, me entorpeci de desejo, com toda licença poética, me marginalizei.

Às margens do julgamento levantei nossa bandeira. Meu jeito estranho combina com o seu. Minha rebeldia tem causa; a nossa. Minha relíquia é o que sinto, e isso ninguém tira de mim, nem você.

[Carol Carolina]