“Está quase curada!”
declamavam as freiras como poesia para os ouvidos de Glória. Clara sorria
mostrando grandes dentes brancos e espremendo levemente os olhos... Sua técnica
em mapear as sensações refinou sua percepção e olhar sobre o ser humano, mas
enfraqueceu suas convicções. O que é amar? Como se sente saudade? Descrever feições. Porque os olhos brilham e as mãos molham? Método e lógica. Como se mede
isso? Como se sente? Tem remédio? Intimamente fracassada, tinha uma vontade
única de ser capaz de sentir com a alma e sabia que aquele lugar ficou pequeno
para as respostas que buscava.
Feito soldado
intrépido arrumou sua mala e resolveu seguir além da ignorância dos muros do convento,
além da insignificância daquele povoado, rumo à cidade dos desvairados ventos do
distante, dos labirintos pagãos e sonhos em perspectiva. A cidade da beira
de lá; Saúva. Glória chamava aquele lugar de “cidade onde ninguém vê” e era pra
lá que Clara queria ir. Foi-se sem despedir-se, desprendida dos laços
simbólicos da convivência durante dezenove diáfanos anos.
Saúva, uma cidade
medíocre, cinza, cheia de ruas, muros e casas, onde tudo é milimetricamente
ordenado, apesar de apertada, afinal não era grande nem pequena, nem ampla nem
estreita, mas povoada de gente, muita gente de um lado para o outro. Clara
subitamente se interessou. Já bem tarde da noite andando pelas ruas de Saúva a
moça cansada e ensimesmada notou que precisava de um lugar para dormir, parou
de frente uma casa, bateu à porta e foi atendida por um rapaz.
Mikael ficou
impressionado com a falta de vergonha daquela mulher que sem demonstrar timidez
tratou de pedir um dia de estadia, já que não tinha para onde ir, nem dormir, além
disso, tinha fome. O homem ali parado, a segurar a maçaneta da porta, ficou
admirando aquela criatura falar disparates sem ao menos ruborizar as maças do
rosto, nem gaguejar, crua. Movido por uma mistura perigosa de curiosidade e
encanto ele resolveu receber em casa a moça dos cabelos castanhos brilhantes e
despenteados, olhar frouxo e boca espremida ávida por uma resposta.
“Entre.”
Entraram e só depois
se apresentaram. Mikael recebeu Clara em sua casa com zelo e atenção, desde a tragédia ali não havia entrado outra mulher.
- Aqui está o quarto,
tem toalha e sabonete dentro do banheiro para um banho quente. Tem roupas
limpas?
- Sim.
- Estarei na cozinha
preparando algo para comer.
- Para mim?
- Também.
Ele desceu as escadas.
Ela fechou a porta.
Mikael é doce, pintor
amável e viúvo. Aos vinte anos casou-se com Helena, perdidamente apaixonado, e
aos vinte e cinco perdeu sua esposa. Helena ficou enlouquecida e fraca com os desvairados
ventos do distante de Saúva, queria outra vida, outro coração que não a
queimasse por dentro, longe de uma existência de aparências e relações artificiais, ela queria desaparecer e por isso se matou. O viúvo
carregava o peso da culpa silenciosamente, resolveu viver sozinho e como
castigo não se envolver com ninguém, queria apagar os momentos de sofrimento e
amor que havia passado com aquela mulher instável, impetuosa e comovente, até
se deparar com Clara.
Os dois sentados à
mesa, frente a pratos intocados, se entreolharam e logo Mikael suscetível aos
mistérios de Clara pediu para ela contasse sua história. Sem rodeios nem melindres
descreveu seu passado, sua condição e porque estava ali em Saúva. – ... E isso não
é quem sou, mas simplesmente o que sei de mim – disse Clara indiferente ao
espanto de Mikael.
Um luxuoso silêncio se
instalou nas paredes daquela cozinha envolvendo-os numa atmosfera cúmplice, quebrando
os invólucros da dúvida e do medo e, por conseguinte, a compaixão daquele homem
diante terna e pura insensibilidade humana. Clara viu faiscar os olhos dele,
nada parecido havia lhe tomado atenção, quis perguntá-lo o que e como se sentia,
mas sabia que seus questionamentos causam incômodos e mal-estar, preferiu não deixá-lo nessa situação.
Depois de uma noite em
claro - com o perdão do trocadilho - Mikael só pensava nela, já estava tomado
pela intempérie apática daquela mulher. Não dormia mal assim há três anos,
desde o suicídio. Levantou-se cedo e foi preparar algo para comerem. Clara já
tinha saído e o deixado apaixonado.
Ela, na sua
impenetrável solidão, continuou sua jornada em busca da alma que lhe falta, com
a graça sobrenatural que essa tragédia pesa seus ombros imperceptíveis à força de
tamanha infelicidade. Essa peregrinação nunca teria fim, e ela sabia. Andar
pelas ruas de Saúva analisando comportamento humano e reações emocionais a
tornavam uma estrangeira, um ser incomum vindo de outra dimensão simplesmente
de passagem nessa vida apagada, sem brilho. "De que adianta essa apurada
observação se nada me toca?" Sua clarividência jogava com seu raciocínio e logo
resolveu procurar Mikael.
- O que duas pessoas
fazem quando estão apaixonadas? – disse Clara assim que ele abriu a porta.
- Não sei... –
confuso. - Elas se amam, ficam juntas, eu acho.
- Não, digo
fisicamente.
- Se beijam, fazem
amor...
- Então dá para fazer
o amor?
Não, não dá. Mikael
ficou em silêncio e no impulso da batida de seu coração a beijou com todo amor
que podia caber dentro dele, fechou o olhos e sentiu o gosto daquela mulher
casta e proibida. Clara de olhos abertos tentava acompanhar os movimentos
estranhos com a língua a fazerem cócegas no céu da sua boca. Ele a levou para o
quarto, fez aquele corpo frio tremer, arder, sentir as pernas dormentes como se
formigas excitadas andassem pela sua pele. Ela teve contrações musculares e espasmos
nervosos de prazer, um fogo latente desconhecido percorria seu corpo e essas
ondas de calor arrepiavam cada pelo de seu contorno até uma súbita e violenta
explosão. Teve um orgasmo. – Isso é o amor? – disse Clara na iminência de ter
presenciado um milagre. Mikael silenciou-se. Não, não é.
[Continua...]
Carol Carolina
Excelente! Mas acho que to precisando chamar os 7 anões pra comentar aqui hein??? Lembra deles?!?! rs!!!
ResponderExcluirAchei que fosse desenvolver a história em cima daquele que tinha me mandado, mas assim ficou bem mais legal!! Aguardo a parte 3!!!
Gio