domingo, 26 de agosto de 2012

A história inventada da menina que não sentia [FIM]

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Uma dor rasgava lentamente o peito desse homem que diante o amor impossível se viu envolvido numa desgraça ainda maior em sua vida; estava voluntariamente apaixonado pela menina que não sentia. Essa sina o desordenou de tal maneira que dentro dele surgiu um ímpeto estúpido e inútil de coragem que o fez fantasiar a possibilidade de curar o mal de Clara com o amor que sentia por ela. O terrível e mortal sonho dos esperançosos.

Ela se deixou ser amada, entendia muito bem que sua alma perdida vagava por outros caminhos menos aquele que a faria talvez amar Mikael. Travaram um relacionamento e naturalmente passaram a viver juntos. Casados. Mais servo do que anjo, ele guardava seu amor e o dedicava à sua mulher todo bem ou maldito dia e a presenteava com rosas encarnadas grandes e distintas, num desafio diário de resignação que, ao fim de quatro anos de convivência, de nada serviu. Seu amor o sentenciou e condenado à praga da incerteza Mikael carregou a cruz e seguiu sua Via Crucis, cego por um sentimento incurável.

Clara via seu marido aflito numa situação delicada e incômoda, assombrado por uma atmosfera que circundava a loucura, à beira de um colapso silencioso. Num dia particularmente estranho, em casa ele a olhava com os olhos fúnebres, firmemente segurou o rosto indolente de sua mulher, que ao mesmo tempo lhe parecia angelical, sentiu uma mão invisível apertar sua garganta sufocando os rugidos de animal ferido e clamou: “Eu te amo, Clara, por que não vês? Olha como estou. Não há sangue mais em mim, bebeste tudo, me sugaste cada gota de vida. Não há fúria nem brando que a faça sentir. És como uma chaga aberta em meu peito. Não se bastaste em arrancar meu coração? O que quer mais? Minha alma? Não posso mais ser vítima dessa loucura. Pode alguém enlouquecer por amar sozinho durante quatro dolorosos anos? Eu te tenho como se não te tivesse. Talvez seja esse querer de querer que esteja me matando. Nem as rosas que te dei conquistaram-te. Tudo é perecível ao teu lado. Vivo na vertigem dos teus sortilégios. Há tanto tempo te espero, espero... E apodreço”.

Imóvel ela acompanhava cada frase dita e não dita por seu companheiro, sem ao menos entender o significado profundo dessa palavra. Lembrou-se das vozes que escutava quando pequena – Desalmada! Desalmada! – Queria que ele parasse de se comportar como um alucinado e por isso insistiu no discurso pedante de sempre:

- Não passei um dia sequer, Mikael, sem lhe agradecer por tudo o que fez por nós e por sentir tanto amor assim por mim...

– Cale a boca! – gritava. – Prefiro uma faca rasgando meu punho a escutar essa ladainha de sempre. Chega! Toma-me, Clara, como teu amor. Crava teu nome em mim e te redescobres viva...

- Eu posso mentir, apesar de saber que não há transparências na minha vida, eu ainda posso mentir se quiseres – falou encarando firmemente Mikael. Estou presa a essa situação desde o dia em que apareci no mundo; opaca, viva, mas morta. Estou morta desde o dia em que surgi. Nem ao menos sei se nasci. Carrego o peso de não sentir e a culpa daqueles que por mim sentem, isso já é suficientemente pesado, não sei se triste, nem alegre, mas pesado. Não consigo lamentar, não tenho a sensibilidade para te amar, mas estou aqui.

- Não. Nunca esteve – sussurrou ele virando as costas, chorando de dor e amor pelos poros da sua pele. E subiu as escadas de casa.

Seria possível outro destino? Quantas orações a menina escondida entre lençóis escutou Madre Glória rogar pela cura de sua rebenta. Clara tomou conta das tantas vezes em que testou os limites do amor de seu esposo, se alimentava de cada lágrima e desespero, observava atentamente cada gesto e palavra dele e extraia seiva sistematizada para teorias e aplicações práticas do seu estudo com as emoções. Não era certo. Subiu as escadas correndo, abriu a porta do quarto e jogado ao chão estava seu companheiro pálido e ensanguentado, à maneira que preferiu estar a viver ao lado dela, com os pulsos cortados.

Um grito assustado. Clara se aproximou dele, viu que a situação era crítica e tentou correr para pedir ajuda, ele a gritou, pois quis pagar o preço de fazê-la sentir com a própria vida; que fosse amor, tristeza ou remorso, mas que sentisse. Ela entendeu e mentiu. Abraçou Mikael num suspiro amável, forçou os olhos para lacrimejarem, passou lentamente as mãos pelos seus cabelos, beijou-lhe a testa, olhou para além dos olhos e disse:

- Meu amor, por que fizeste isso? Eu te amo, quantas vezes for preciso digo, pois agora sinto uma dor a quebrar os ossos do meu peito como se fosse meu coração sair pela boca. Meu estômago se revira dançando dentro de mim. Minha pele se arrepia como se uma brisa gelada me acariciasse... Estou aqui. Aqui! E te amo.

No último fôlego de vida Mikael sorriu e murmurou:

- Não minta para mim. Você ainda não sabe fazer seus olhos brilharem, Clara.

Sem adeus ele se foi. Sem tempo para sua gratidão ela se levantou e ligou para o hospital buscando ajuda. Em vão. Mikael morreu como um mártir nos braços de seu amor.

Ela o enterrou e junto com ele sua própria petulante e insistente ideia de convivência social, isso não era possível. Aquilo que lhe faltava, seja lá o que isso for, causava tanto repulsa nas pessoas que preferiu se isolar. Passou a viver sozinha às escuras manhãs e luzentes noites, o único momento do dia em que saia de casa era quando todos estavam a dormir, caminhava um pouco e tentava encontrar algum estabelecimento aberto para compras básicas.

Aproximadamente dois meses após a morte de seu marido, a viúva não se sentia muito bem, digo fisicamente,  começou a ter manhãs enjoadas e desmaios inexplicáveis. Foi ao medico e lá informada que estava grávida. Saiu apressada e confusa do consultório, pois não queria olhar mais um segundo sequer a cara de medo do doutor diante o estado inalterado da mais nova mãe.

Desceu até a rua principal de Saúva, movimentada e barulhenta. Parou diante um cruzamento, precisava atravessar. “Minha vida foi roubada de mim”. Pensava. “Todo esse tempo pessoas a me dizerem como devo ser e como agir. Quais são meus interesses? Aquele olhar. Não! Aqueles olhares estranhos a me perseguirem. Duas vidas. A minha e a mentira nos olhos do outros. Permaneço viva por eles? Ou por mim? E agora um filho? O que devo eu mostrar aos outros? Demonstrações de afeto para as escolhas que não fiz. Mentir. Foi tudo uma mentira mesmo sendo verdade. Nem mesmo eles sabem o que é felicidade e ainda assim se espantam por eu não sentir. Ou seria uma filha? Existem épocas as quais você não pertence. Somente eu posso entender minha condição, minha escuridão, humanamente permaneci viva pelas pessoas agora preciso ir.”

Lembrou-se das rosas de Mikael e disse:

- Eu mesma vou comprar as flores.

Atravessou a rua às cegas, olhando fixamente para as rosas encarnadas grandes e distintas da vivenda do lado de lá. De repente um barulho alto de buzina, logo depois o som de uma freada brusca a fez atenta. Viu um carro velozmente se aproximar. E no eterno milésimo de segundo antes da colisão, no infinito e curto espaço entre ela, o carro e a morte, Clara sentiu pela primeira vez uma sensação de folga nos ombros antes pesados, um conforto indescritível dentro de seu peito, como se cada órgão finalmente tivesse achado seu devido lugar e tudo se encaixava dentro de si. Sentiu a consolação inédita e original de sua alma finalmente a segurar suas mãos antes gélidas, mas agora quentes e vivas. Era tudo tão bonito, tão grandioso naquele limitado e perpétuo intervalo de tempo e espaço antes do choque que sobrenaturalmente seus olhos choraram. Seu corpo transcendia e respirava um só sentimento, alívio. Abriu os braços em paz olhando para o céu e despediu-se do filho que não teve. Era o fim. Clara desapareceu.



[Carol Carolina]


Um comentário:

  1. Meu total espanto admirador. O tempo não desaparece da carne... carne anciã.
    O propósito de uma vida dedicada ao Belo... que coragem belíssima, Carol.
    Salve a chama! Salve a chama! Reverencio.

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