Ela
não nasceu, foi encontrada num povoado qualquer, numa rua desconhecida, debaixo
de uma árvore insignificante e enrolada numa manta azul de rosas encarnadas grandes
e distintas com cheiro fecundo de leite. Era só um bebê sem passado, dizem
que mesmo antes de nascermos todos temos um passado; ela não. Uma
recém-encontrada, não existia até ser descoberta por uma madre de um
convento ordinário daquele povoado. Madre Glória, velha e quase surda,
também tinha um coração quase bom.
Naquele
dia Glória saiu para sua bendita caminhada matinal. Um pé depois o outro e o
olhar para o chão, entre cada passada um devaneio, mais um passo lentamente
calculado e, de repente, um bebê enrolado numa manta azul de rosas encarnadas
grandes e distintas ali na rua desconhecida, sem chorar, nem gemer, um pacote
colorido no cimento cinza. O coração quase bom da velha freira pressentiu
naquele momento a sua santificação, o tão esperado sinal sagrado depois de anos
à espera da sua autoconsagração. “Enfim!” disse; mal sabia que para a
recém-encontrada era o começo de tudo.
O
bebê passou a ter nome; Clara. Passou a ter casa; um convento. Passou a ter
utilidade e valor; ser prova da boa vontade e testemunha autêntica da fé do
coração quase bom de Glória. Cresceu assim, um achado, quase que inventada,
tendo coisas e invadida por um amontoado de substantivos e figuras que a
definia. E isso era nada perto do inexplicável mistério daquela menina já com
ralos cabelos pretos espetados e lânguidos olhos de cabrita morta. Clara não
sentia.
Aos
três anos de idade ficou evidente, a menina não se entristecia e nem se
alegrava, parecia que nada lhe passava pelo coração. Sorriu uma vez ao lhe
fazerem cócegas nas costelas, chorou quando cortou um pedaço do dedo mexendo
nas agulhas e tesouras de Glória, mas nada lhe perturbava afetivamente. Era criança
estranha, mas mansa. “Desalmada!” sussurravam as beatas do santuário. Ainda que
velado, Glória sabia dos rumores de que seu rebento não tinha alma, um sopro de
desgraça naquele coração quase bom e agora quase santificado.
-
Só pode ser doença... E daquelas do sistema nervoso – diziam as línguas gélidas
daquele internato. Madre Glória resolveu levar Clara ao médico e de mãos dadas
saíram numa manhã quente e seca sem importância. Glória pelo caminho observava
aquele rosto pueril de então seis anos de idade, sem nenhuma graça, apática e insuportavelmente
domesticável. A mulher respirava mal pela tortura daquele infortúnio, pensando
que a falta de afeto e ternura daquela criança acabava por também destruir o quase
iminente zelo maternal que sentia por ela.
Chegando
ao consultório a freira, quase enlouquecida, tentava explicar tudo o que se passava com Clara:
-
Doutor, ela não fica alegre, nem triste, não demonstra carinho, nem raiva. Eu
não sei, pode parecer loucura, mas ela não sente nada, sabe...
-
Como assim? A menina não sente... – tentava entender o médico olhando para a
criança que o encarava com os olhos fixos e rasos – Ela sente fome?
-
Bem, quando tem fome ela diz que quer comer.
-
E sente dor?
- Uma vez se cortou e chorou... Sim... Acho que foi a dor, mas essas de nervos,
ligamentos – discorria apavorada – só que não é isso doutor, estou falando de
sentimento, sabe? Como se mede isso? Tem exame? Ou melhor, tem remédio?
O
médico se calou por alguns segundos, talvez tenha até tentado pensar numa
resposta, mas preferiu continuar escutando.
-
É uma criança normal tirando essas coisas da alma... – suspirou a velha – Clara
acorda, come, vai para a missa comigo, faz e entendo o que peço, mas nunca me
abraçou, nem sorriu, nunca ficou enciumada, muito menos teve medo. Eu não
entendo. Pode ser sistema nervoso, ou o coração quem sabe... – descrente,
procurava respostas.
Logo
o médico interrompeu a ladainha da freira e virou-se para Clara dizendo: Qual
seu nome? Clara – murmurou a menina. Você tem quantos anos? Seis. O que você
gosta de fazer? – Clara não respondeu – Você gosta de brincar? – Muda.
Finalmente o médico, nada comovido com o desespero de Glória, recomendou alguns
exames neurológicos e disse que a criança era uma menina introspectiva.
Glória
sabia que Clara tinha coração e que seu sistema nervoso não tinha problema
nenhum, tudo era muito difícil de identificar. ‘Introspecção é coisa de gente
sabida’ pensava sozinha. Tentando se enganar Glória rezava dia e noite para que
a criança sorrisse, chorasse ou fosse afetada por qualquer sentimento, mas tudo
o que ela não queria era acreditar que a menina não tinha alma.
O
tempo correu e a criança tornou-se uma mocinha de quinze anos devidamente inteligente e educada.
Glória sabia que suas orações não resolviam o mistério da menina e tratou de
orientar e padronizar Clara nos moldes sociais daquele povoado. O maior medo
das beatas do convento era que estivessem criando alguém sem virtudes nem caráter,
se dedicaram então a catequizar a jovem. Anos de sermões e pregações sobre o
que é ser bom, como tratar o próximo, ou melhor, amar o outro. Agradecer sempre
por tudo, também os infortúnios. Não agredir a ninguém, não matar, inclusive a si mesmo. Nunca mentir e fazer o
bem. Simples assim.
Sem
afetação Clara apreendia tudo mesmo não compreendendo o que era ensinado pelas
tias do convento. A garota era rápida e comedida, sabia muito bem de sua condição,
afinal aos dez anos tinha sido castigada por não sorrir e nem ficar alegre ao
reencontrar Glória depois de um retiro religioso de trinta dias que a madre
tinha feito num povoado ali perto. – Por que não ficou feliz? ‘O que é ficar
feliz?’ - se perguntava Clara. – Você não ama madre Glória? – diziam. ‘Como eu
faço para amar?’ questionava sozinha a pobre moça insensível.
Silenciosamente,
e já aos dezoito anos de idade, Clara tentava viver naquelas circunstâncias
de maneira que não a achassem estranha, apesar de não entender o que se passava
de tão anormal com ela mesma; se não passasse a ser prática como as definições
que sempre se meteram em sua existência ditando como ser e como agir,
certamente cairia num processo infundado e desarticulado de isolamento. Precisava encontrar saídas para facilitar sua
interação com outras pessoas, no caso, as velhas.
“O que nós vemos das cousas são as cousas (...). O essencial
é saber ver”. Isso ela sabia fazer. Clara passou a andar com um caderno azul anotando
tudo o que via e percebia nas pessoas concernentes às emoções, sentimentos... Racionalmente
a bastarda ia rabiscando suas conclusões lógicas para cada situação; uma vez,
por exemplo, que madre Constelação chorou ao se lembrar de seus queridos pais
já mortos. A garota discorria “água caiu dos olhos dela quando se lembrou dos
mortos. Estava triste e chorou. Sorriu ao contar as brincadeiras do pai. Estava
feliz e sorriu. Derramou lágrimas dos olhos ao lembrar- se da mãezinha querida
e seus abraços antes de dormir. Estava feliz e chorou? Estava triste e sorriu?”.
E os escritos enchiam páginas de questões e percepções. Não foi fácil, teve que identificar e prestar minuciosa atenção a cada abalo afetivo daquelas
mulheres. Anotava tudo.
Imediatamente havia se tornado uma profissional em simular
comportamentos e reações emotivas, teve que elaborar tecnicamente e
racionalmente máscaras para cada sentimento, precisou prender a vida em
conceitos e formas para entender as emoções já que não podia senti-las.
[Continua...]
Carol Carolina
Carol Carolina
continua... continua... ^^
ResponderExcluirCadê a parte II?
ResponderExcluirnão matar, inclusive a si mesmo. o pacote colorido no cimento cinza..../ o tempo frio vem fazendo bem a vc, que é do verão. os recolhimentos climáticos... os mares bravios com nuvens carregadas de escuridão. liberta os medos, mas liberta a coragem. Deus anseia por nós - Por nossas Glórias, e Constelações. tá muito bom te ler, vc que quer desvendar senão todo o mistério, ao menos o seu. toda Clara é meio obscura.
ResponderExcluirColeguinha, poste a parte II ae...ja esta dando coceira e alergia de desespero pra saber a continhuação...xD
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